13 fevereiro 2010

janela dos olhos

Roia as unhas freneticamente, debruçada no parapeito da meia janela que abrira. Ao seu lado uma mesinha improvisada e em cima dela meia garrafa de uísque barato, um pouco no copo, o maço de cigarros e o isqueiro. No cinzeiro um cigarro queimava solitário e como não ventava uma fumaça fina subia cambaleante e se espalhava sumindo no ar.

“Ai”, disse baixinho quando tirou uma lasca a mais da unha e logo em seguida surgindo um ponto de sangue. Lurdes ficou olhando o ponto vermelho, mas não se preocupou em limpá-lo e tampouco com o curativo, afinal, era normal que isso acontecesse quando roia as unhas “demais da conta”. Enfiou o dedo na boca e passou a língua no pequeno ferimento. Sentiu o gosto do sangue se misturar com o gosto do uísque e do cigarro, olhou novamente o dedo e constatou que não sangrava mais.

Voltou-se para dentro. Pegou o cigarro já pela metade e tragou enquanto passava os olhos pela casa. Passava das duas da manhã. A casa toda estava escura, a sala era iluminada apenas pela luz que saía da televisão sem som. Lurdes estava morando sozinha há dois meses. Alugara aquela casa que ficava na parte de cima de uma oficina mecânica, viu o anúncio no jornal e era o que podia pagar. Não gostava muito do lugar, chegou a arrepender-se, mas não voltaria para a casa dos pais. Sentia-se só e desde que tinha se mudado não recebeu ninguém em sua nova casa, nenhuma festa de boas vindas, nenhum amigo para comemorar, ninguém para jantar. Não tinha amigos, não tinha nem namorado. Não ligou para mãe para dizer que estava tudo bem e ignorava suas ligações no celular. Não queria falar com a mãe, ela lhe fazia lembrar o pai e Lurdes não queria pensar nele, tinha nojo. Sentia nojo do pai, que durante anos a molestou. Sob a desculpa de “dar boa noite” entrava em seu quarto e tocava seu corpo todo com aquelas mãos ásperas e calejadas pelo trabalho nas obras, o cimento e os tijolos.

Uma lágrima fina escorreu pelo rosto e chegou ao canto da boca com um gosto salgado-amargo de ódio, mas Lurdes prometera para si mesmo que não iria mais chorar. A primeira vez que chorou foi aos dez anos, quando sentiu aquela dor, como se lhe rasgassem ao meio puxando suas pernas uma para cada lado. Chorou sozinha em seu quarto pequeno depois que seu pai saíra apagando a luz e fechando a porta atrás de si. Chorou em silencio, abafando os soluços que engasgavam um grito, o grito de ódio, que ainda não sabia que era ódio. A última vez que chorou foi aos dezesseis anos, quando sentiu aquela dor, mas dessa vez foi a dor da bofetada que levou ao se recusar deitar com o próprio pai. Ameaçou contar para a mãe e ir à polícia. Dessa vez não houve soluço nem grito abafado, apenas o choro do ódio, e ela já sabia que era ódio.

Agora com vinte e dois anos resolvera morar sozinha. Em um emprego idiota como operadora de telemarketing, ganhava mal, mas dava para o aluguel. Usava o vale do almoço para comprar o que comer na janta. O que sobrava economizava e comprava algumas coisas vez em quando, às vezes, uma roupa. Há dois meses chegou do serviço e anunciou que iria morar só, sairia de casa naquela noite. Arrumou todas as suas coisas e mandaria buscar a cama e a cômoda na manhã seguinte, pediu à mãe que entregasse ao carregador. Sob o maternal choro compulsivo, beijou-lhe na testa e saiu pedindo que não se preocupasse, ficaria bem. A mãe perguntou se não iria se despedir do pai, Lurdes respondeu que já o fizera.

E o fizera mesmo. Enquanto arrumava suas coisas encontrou uma pequena camisola branca que o pai adorava vê-la usando. Vestiu de frente ao espelho e ficou olhando por vários minutos. Estava mais curta que antes, era de sua adolescência, dos seus dezesseis anos. Caminhou vestida com o pequeno traje até o quarto do pai que estava em sua cama assistindo ao televisor. Ficou parada na porta deixando que o velho a olhasse com olhos famintos quase que babando. Com um movimento de uma das mãos acenou para que Lurdes sentasse em seu colo, como fazia antigamente. Lurdes pediu que esperasse um pouco. Foi até a cômoda e pegou um envelope de comprimido azul. Sabia o que era aquilo e o efeito que ele produzia. Entregou dois ao pai e pediu que os tomasse, voltou para seu quarto e trocou de roupa. Quando retornou encontrou o pai se contorcendo e apertando o lado esquerdo do braço. Jogou-lhe um beijo da porta fechando-a em seguida e não viu quando ele pediu ajuda.

Assim que Lurdes desapareceu virando a esquina, sua mãe voltou para dentro de casa aos prantos mais lastimosos que uma mãe pode ter ao perceber que perdeu seu filho. Foi ao quarto pedir abrigo ao seu velho, era assim que o chamava. Ao abrir a porta deparou-se com o homem caído no chão, olhos arregalados e a boca aberta, não respirava mais. O médico disse que foi parada cardíaca.

Um comentário:

Jaya Magalhães disse...

Eu chorei. Eu me revoltei. Fiquei indignada, pois vivi a história ao te ler. Tomei as dores, me senti agustiada, paralisada.

A maneira como você escreveu isso aí, moça, de tão real, me doeu horrores. Mesmo. E isso é maravilhoso. Essa coisa de colocar vida em palavras. Azeda ou doce.

E aqui, nessa parte do comentário, eu fico querendo te dizer do quanto tu é doce. E digo. Porque tuas últimas palavras em meu canto me fizeram querer te abraçar e rodopiar contigo, de tão linda que tu é. Fico precisando então que um dia confirmemos nossa suposta existência. Haha.

E ó, um beijãozão pra você.